um oitão na cintura

o ofício de professor tem lá seus desajustes… salários, valores familiares, vaidades, autoridade… algumas vezes a única coisa que faz com que nos sintamos melhores é não estar lá, não ter que fazer, parar… parece que a luta é muita, que a batalha é maior do que nós podemos enfrentar.

um dia depois do outro. e vem um sopro de vida, um golpe do destino, e… uma nova escola, novos colegas, novos alunos.

e chega um ponto em que a cabeça da gente se transforma num vendaval, numa maré que sobe, transborda…

a moça branca sobe o morro, a moça branca tem cabelo colorido, a moça branca não é da comunidade. a moça branca sofre um choque de realidade. acabou a tevê, acabou a notícia, na escola tem polícia! não seria nada se fosse apenas vaidade.

cidade de deus, morro do alemão, rocinha.  favela meu nêgo, é bem menos intensa pela tevê. lá dentro não é o medo. lá dentro é olhar a foto da mãe na parede, e pensar em não fraquejar.

quem me olha na rua não tem ideia do sentimento que carrego dentro de mim.

quando chego na escola passo a fazer parte da comunidade, da realidade, da rotina, do viver e da insanidade que existe em duvidar da própria capacidade humana.

tudo o que uma mulher de carpete soube até aqui da vida “al lado del camino” foram contações de história em projetos sociais, e a vida que passa na tevê.

lá dentro da sala de aula, represento  toda minha honestidade, levo junto com o livro texto um amor que se pode respirar…  olho filhos que desconhecem suas raízes, que desconhecem palavras faladas em tom normal, que reconhecem  armas, drogas, sexo sujo, animalesco.

e tenho olhos nem sempre atentos, que desviam o olhar e tem medo de amor. não sei rezar direito, mas sei elevar meu pensamento, então eu respiro, e sofro um pouco, porque o bom só é bom quando é para todos.

alguns chegam sem café, e talvez aquela merenda seja a única refeição do dia. sabem histórias de dor, de armas, de prostituição, de medo no olhar. alguns não sabem como é ganhar colo, não reconhecem os meus sinais básicos de afeto.  as minhas crianças não têm infância. as minhas crianças são adultos pequenos com ânsias de dinheiro fácil, de sexo fácil e de comida no prato. tive que aprimorar meu vocabulário básico de gírias, eu tive que pedir ajuda para os racionais MC’s, eu tive que chorar por horas.

eu não quero gritar, porque não posso. não posso repetir um comportamento que condeno. eu quero que eles se permitam serem amados. como o amor para eles talvez tenha conotação diferente, eu preciso esticar e moldar meu amor, até que ele consiga chegar lá dentro do coração. eu preciso de força, de luz, de paz de espírito. eu preciso de paz que eu nem sempre tenho, e de serenidade… eu quero ter meu amor correspondido, eu quero uma fresta na janela da alma… eu quero abraços sem medo. eu quero a infância de volta. preciso protegê-los  da vida adulta, da dureza  de conhecer o crime, da dureza de participar do delito.  de vender o próprio corpo.  machuca ver a infância mutilada, perdida, a ausência de contatos reais, de afeto positivo e incondicional. e eu reclamando porque o split pingava na área…

a raposa do pequeno é príncipe disse que a gente é eternamente responsável por aquilo que cativa. o que me preocupa nessa oração não é o advérbio eternamente… 

não tenho medo da pólvora, do oitão na cintura. eu tenho medo é desse país e de onde a gente vai parar.

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